É sabido que o processo de industrialização mundial sofre, desde seus primeiros avanços, severas críticas sobre as transformações sociais por ele geradas. De Marx -que criticava as relações formadas pelo sistema de apoderação do maquinário pela burguesia e a exploração operária por ela criada- a Bauman, que aponta, dentre outros fatores, o veloz e agressivo avanço tecnológico como um dos principais “culpados” pela formação de uma sociedade imediatista e superficial, o progresso da indústria sempre passou por observações negativas por parte de intelectuais do mundo todo. Nesse sentido, insere-se a obra hoje analisada, Tetsuo – O Homem de Ferro, cuja apresentação vertiginosa caracteriza de forma extremamente peculiar as relações entre homens e máquinas. Vamos lá!
Escrito, produzido e dirigido por Shinya Tsukamoto, o filme é, sem dúvidas, umas das relíquias do cinema underground. Rompendo com diversos conceitos já gravados na pele dos críticos, o que reduziu seu acesso às massas, a película tem sua difusão ocorrida apenas no restrito espaço do universo cult, principalmente entre os aficionados pelo cinema japonês e entre os fãs da cultura cyberpunk, muito explorada no decorrer da narrativa, fazendo com que o filme fosse cada vez mais aclamado dentro do fechado espaço do cinema alternativo. Eu, a propósito, o descobri por acaso, enquanto lia sobre a produção cinematográfica nipônica.
Apresentando uma temática popularizada em filmes trash, nos quais homens se fundem com máquinas de forma totalmente absurda e sem nexo, o filme, todavia, não se resume a um gore barato, apresentando excelente profundidade no que diz respeito à mensagem a ser passada. Além disso, apresenta fotografia extremamente bem feita, valorizada pela escolha da filmagem em preto e branco, na qual podem ser extraídos verdadeiros quadros a serem pregados na parede.
Conta, ainda, com um forte tom de surrealismo, mostrado em cenas de corte rápido, bem como na apresentação de filmagens tremidas feitas com câmeras de mão e, até mesmo, através da sobreposição de imagens usando a técnica de stop motion. Há, também, a utilização de efeitos especiais muito simples e de maquiagens grotescas, contribuindo para a estranheza visual. Combinado a essas características “oculares”, temos uma trilha sonora sinistra e chamativa inteiramente moldada na música industrial e que muito me lembrou o álbum Red Mecca, da banda britânica Cabaret Voltaire. Todas essas características, ao serem somadas, produzem uma obra frenética e perturbadora, uma verdadeira experiência carregada de insanidade.
O enredo tem seu início quando “O Fetichista” (Shinya Tsukamoto), um aparente trabalhador japonês deslumbrado por peças de metal entra em seu quarto, um local sujo repleto de peças industriais, fios e maquinários, além de recortes de atletas corredores e, então, inicia uma cirurgia caseira, na qual talha sua própria perna e nela implanta um grande pino de ferro. O novo componente do corpo, porém, é naturalmente rejeitado, gerando um estado de putrefação que assusta o jovem. Desesperado, este corre pela rua e é atropelado por um carro. Seu motorista, conhecido como “O Assalariado” (Tomorowo Taguchi), não se importa com o estado do sujeito e, visando sumir com a evidência do ocorrido, atira-o em um local ermo.
Nesses primeiros minutos, Tsukamoto, que também vive o personagem apresentado, já inicia sua enxurrada de críticas à industrialização acelerada no Japão daquela década, ao mostrar um homem totalmente alienado que, devido ao seu fascínio por peças metálicas, bota sua vida em risco objetivando viver em simbiose com porcas e parafusos. Ao mesmo tempo, explora o sentimento de individualidade produzido pelos modelos de produção da época mostrando o total descaso por parte d’O Assalariado em relação à vida que ele comprometeu.
Após um tempo, nos é apresentado uma cena na qual O Assalariado interage com máquinas de uma indústria, dançando em meio a um jogo de luzes que promove um verdadeiro frenesi.
Aparentemente, a última cena era apenas um sonho. Ao se preparar para sair de casa, o trabalhador se fere com seu barbeador elétrico. Uma parte de metal do aparelho fica cravada em seu rosto, dando início a um processo de transformação bizarro, no qual peças mecânicas passam a substituir a o corpo orgânico do atropelador. Mesmo assim, ele ainda vai ao trabalho. Na volta, é perseguido por uma mulher que também foi contaminada pela sucata, apresentando um braço robótico. Na verdade, essa porção de ferro é uma ampliação d’O Fetichista que agora, ainda mais perturbado pela sua obsessão, tem em mente contaminar todo o mundo com sua febre metálica.
Após conseguir “derrotar” a mulher-robô, o Assalariado retorna para sua casa onde, após manter relações sexuais com sua mulher, tem seu processo de mutação acelerado, fazendo com que seu corpo inteiro passe a ser revestido por fios, peças e parafusos. Nesse momento ocorre a cena mais icônica do filme, na qual, após ser excitado pela esposa, o Assalariado revela uma broca metálica no lugar de seu órgão copulador (não há a possibilidade de lembrar esse trecho sem ter algumas convulsões de riso). Ele passa, também, a perder sua consciência, tornando-se uma grande montanha de lixo mecânico irracional e agressiva, o que culmina na morte sádica de sua companheira.
Mais uma vez, essa cena pode ser vista como outra crítica feita pelo diretor, na qual ele expõe as frustrações de um trabalhador da classe média que, aos poucos, nutre em seu âmago um sentimento de revolta que acaba sendo totalmente liberado quando este atinge seu limite.
Por fim, o Fetichista acorda em seu quarto-oficina e, após também ter passado por uma série de transformações, vai ao encontro de seu rival, no melhor estilo dos filmes/desenhos japoneses. Após o confronto, apresentado através de imagens rápidas e que prendem totalmente a atenção do espectador, o Fetichista consegue assimilar o corpo do Assalariado, transformando-os em uma única grande estrutura mecânica com vida. Ele, então, revela seu imponente desejo psicótico de transformar tudo o que existe em um único monte de ferro vivo, aceitando com prazer sua condição final de escravo das máquinas.
Finalizando, Tsukamoto revela de forma ácida sua última condenação: a de que, no final das contas, todos nós somos apenas engrenagens do sistema industrial e que, por mais que tentemos relutar e nos libertar dessa situação, sempre seremos dominados por nossa condição de serventes desse sistema.
Tetsuo – The Iron Man é um filme cru e extremamente impactante. Contudo, embora não seja, de fato, uma película comercial, a experiência de assisti-lo é válida a todos públicos, umas vez que é um filme rápido e, embora não apresente muitos diálogos, está longe de ser algo tedioso.
Obrigado pela atenção e não se tornem megalomaníacos!
Cordiais saudações
P.K.S.
Título Original: Tetsuo – The Iron Man
Direção: Shinya Tsukamoto
Roteiro: Shinya Tsukamoto
Produção: Shinya Tsukamoto
Duração: 67 minutos
Roteiro: Shinya Tsukamoto
Elenco: Tomorowo Taguchi, Kei Fujiwara, Shinya Tsukamoto, Renji Ishibashi